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Por Isabelle Azevedo
Quando começamos a lidar com o fazer jornalístico, sempre nos deparamos com a possibilidade de escrevermos grandes textos a partir de situações presenciadas no nosso dia-dia, ou apenas conversando com pessoas que poderiam render um bom personagem para alguma reportagem.
Apesar do pouco contato com o mundo maravilhoso do jornalismo, começo a ver notícias, reportagens, artigos, crônicas, resenhas em tudo quanto é lugar. Principalmente depois de cursar a disciplina de um certo “fenômeno”. Não sei se todos os estudantes de jornalismo ou os jornalistas assim percebem. Eu percebo assim. E o melhor lugar para se ter essas alucinações/percepções é, sem dúvida, nos transportes coletivos, onde se é possível achar grandes personagens.
Já perdi as contas de quantas vezes presenciei cenas engraçadas em ônibus, figuras malucas (como um carinha que reproduziu toda a defesa de monografia na “topic”), conversas quase monossilábicas que duraram a viagem inteira (tu é foda mah!) ou os não-raros vendedores de guloseimas e suas intermináveis cantorias sobre as dificuldades da vida urbana. Todos com alguma história para contar. Todos prontos para se tornarem mote de algum texto jornalístico pelas mãos desta estudante-cronista, que quase nunca acha tempo para escrever.
De todas as situações já vividas, nenhuma me chamou tanta atenção quanto a que se passou na última segunda-feira. Quando a inépcia/inexperiência me fez perder o que poderia ter sido uma grande reportagem.
Na parada do ônibus, fui abordada por um jovem alto, de face rosada, de olhos tão azuis... Mais parecia um anjo. Era quase isso. Vestia roupas de frade (Ah, se não fosse um religioso...), um chinelo de couro e trazia um rosário e uma medalha junto a cintura. Queria se informar como fazia para ir da Avenida Jovita Feitosa ao terminal da Lagoa. Ele estava perdido. Não sabia andar de ônibus por Fortaleza. Aliás, nunca tinha andado de ônibus. O frade-anjinho falava carregado, com um sotaque que mais lembrava os sotaques italianos das novelas globais.
Uma senhora, que também aguardava o transporte, tratou de fazer as honras como repórter. “Eu pergunto, mas não é por curiosidade”, alegou a velhinha depois. E ele, meio tímido, revelou ser um cearense que vivia em um mosteiro em Quixadá. Os “irmãos” falavam apenas italiano entre si, daí o porquê do sotaque. Também havia morado muito tempo na Europa.
A mulher continuou sua “exclusiva” com o pobre rapaz. Logo ela quis saber em que ano de Teologia o frade-anjinho estava. A resposta dele foi surpreendente: “Não faço Teologia. Estudo Arte Bizantina. Sou especialista nesse tipo de arte”. Pronto. A luz do índice “isso daria uma boa reportagem” soou em minha cabeça. Um cearense que estuda Arte Bizantina? Isso é tão raro quanto ornitorrincos encantados que voam com as orelhas.
A senhora começou a insistir em perguntas mais íntimas, sobre a vida religiosa, deixando o meu personagem mais tímido ainda. Mas o que não saia mesmo da minha cabeça era a Arte Bizantina. Já podia me ver entrevistando o “irmão”. Escrevendo ainda sobre essa arte, datada do século três depois de Cristo e feita pelos primeiros cristãos ortodoxos, como ele me explicou já na “topic”, quando, enfim, eu parecia iniciar a minha “exclusiva”.
Parecia. Logo fiquei tímida, quando o frade-anjinho comentou comigo como as pessoas gostavam de fazer perguntas indelicadas sobre a vida dos religiosos. Uma alusão a uma certa senhora. Mesmo assim, arrisquei-me a perguntar sobre o seu trabalho. Afinal de contas, era mesmo o que me interessava. Contou-me ainda que, além de estudar, produzia Arte Bizantina. Quase delirei ao saber que estava diante de um artista ou - quem sabe?- de um grande artista. Disse-me que era um mercado caro. Vendia poucas obras. Não aceitou meu argumento de isso se dever ao fato de a arte bizantina não existir no nosso país. Informou-me que existiam duas escolas no Brasil. Ambas no Sudeste. Ele havia freqüentado uma delas e depois pôde se especializar na Europa.
A aula sobre a arte bizantina chegou ao fim rapidamente. Ele precisava descer. Indiquei-lhe a parada na qual deveria descer e o orientei sobre qual ônibus tomar para ir ao terminal da Lagoa. Ele parecia haver entendido tudo. A única dúvida mesmo foi saber por onde deveria sair da “topic”. “Você desce por onde entrou. É só girar a catraca ao contrário”, respondi rindo da pergunta ingênua. Logo se via que ele nunca andara de transporte alternativo.
Fiquei com a sensação de que a viagem havia sido muito curta (culpa da pressa do motorista). Não perguntei tudo o que queria saber sobre Arte Bizantina. Nem se quer cheguei a perguntar o nome do meu personagem.
Pela janela, fiquei vendo o frade-anjinho sumir. Lamentava-me por deixar ir embora o personagem da minha reportagem, sem ao menos pedir-lhe algum contato. Ou melhor, vi minha reportagem ir embora. Paciência. Aprendi uma lição. Meu consolo é dedicar-lhe esta crônica.