quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Mémorias Mutiladas

Por um lado, Quixeramobim parece continuar a mesma. A antiga estação ainda permanece intacta, como se ainda esperasse os trens que faziam a alegria da cidade. Na Igreja Matriz, Santo Antônio continua a atender aos pedidos das moças casamenteiras e dos romeiros. A casa do beato Antônio Conselheiro também continua preservada, mas já não recebe visitantes.

O sol escaldante e o calor infernal do sertão continuam iguaizinhos. Assim como os sermões do padre ora atacando os homens casados que se atrevem a provar de outras carnes lá pelos lados do Cupim (distrito local), ora atacando as novelas da Globo, que ele jura por Deus não assistir. Tudo parece como sempre.

Apenas parece. Se andarmos pelo município, logo percebemos que muita coisa mudou. Quixeramobim já não é mais a mesma. Pelo menos, não a mesma da minha infância, quando os inúmeros terrenos baldios tornavam-se campos de futebol ou lugares para jogar o bom e velho cemitério. Mas já não há espaços vazios pelo lugar. A cidade cresceu, impulsionada, sobretudo, pela economia. O motivo já não é o algodão. O ouro branco do século passado deu lugar a um promissor pólo calçadista.

Junto com a expansão econômica vieram os prédios de mais de dois andares, a abertura de faculdades, os hipermercantis, os hotéis de luxo, a adoção de semáforos e, por último, os “Shoppings” (isso mesmo, no plural. Existe mais de um). Tudo mudou. Até os ventos vindos do Rio Banabuiú já não refrescam mais as noites quixeramobinenses (culpa do aquecimento global?).

Pouco a pouco a cidade vai ganhando uma outra forma. O cheiro de novo vai desfazendo-se das lembranças da gente daquele lugar. E, assim, os prédios históricos vão sendo alterados sem dó nem piedade da memória histórica que guardam. Tudo para preparar a cidade para o “progresso” econômico.

O prédio conhecido como “casarão do José Felício” é um exemplo do descaso. Quase veio abaixo para dar lugar à expansão de um dos hipermercantis quixeramobinense. O processo de tombamento do prédio já se havia iniciado, quando a noite do sertão presenciou as primeiras violências à antiga Casa Grande do período colonial. A população ficou estarrecida com o crime. Mas ninguém viu nada, afinal à noite todos os gatos são pardos, principalmente se eles forem de famílias importantes. Graças à repercussão midiática, os crimes cessaram. Por pouco o casarão não foi transformado em “mega-hiper-supermercado”.

A casa colonial é o exemplo mais visível dos atentados ao patrimônio histórico-cultural da cidade. O antigo e o novo estão em constante desarmonia em Quixeramobim. A antiga praça da prefeitura, por exemplo, ganhou um “design” mais arrojado, ideal para showmícios. De antigo mesmo só sobrou a Imagem de Nossa Senhora do Rosário que os fiéis não deixaram retirar. Mas a santinha quase passa despercebida frente à opulência arquitetônica do monumento erguido para lembrar Quixeramobim como centro geográfico do Ceará.

Nem a Igreja Matriz, datada do século XVIII, escapou do novo. O antigo piso foi trocado por um granizo tão brilhante que refletiria o céu se a igreja não possuísse telhado. Enquanto isso, os santos, alguns com a mesma idade do prédio sagrado, ficam à mercê do tempo e dos cupins. A Igreja diz não ter dinheiro para restaurá-los, mas para comprar carros e sítios todo santo ajuda.

Quixeramobim vai perdendo aos poucos sua memória patrimonial. Tudo por conta da pressa de crescer. O município perdeu muito espaço político e econômico para as cidades que nos séculos anteriores não passavam de meros distritos. Hoje, vai tentando recuperar o desenvolvimento que a história não lhe concedeu e faz isso mutilando a própria história. Infelizmente, o tempo que rege o progresso em Quixeramobim é o presente. A cidade não se importa com o passado, tão pouco com o futuro. E o passado certamente não será presenciado pelas gerações futuras.



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