domingo, 16 de março de 2008

Lembranças


Procurou daqui, mexeu acolá, revirou uma parte das roupas e não encontrou nada. Ué! Onde estaria? Tinha certeza que ela estava esquecida bem ali. Droga! Uma hora dessas era até bom que ela falasse. Dissesse onde estava. Ah! Se falasse... Contaria tantas histórias. Talvez tivessem alguns aplausos. Mas o certo é que faria qualquer platéia derramar rios de lágrimas.

Dramática. Sua vida nem era lá essas coisas. Daria no máximo uma minissérie em cinco capítulos. Um capítulo para cada cinco anos. O primeiro capítulo seria então uma chatice. Teria tão pouca coisa a contar. De lembrança mesmo só aquela vez em que se perdeu no parquinho. Ainda lembrava. Soltou a mão da irmã mais velha e correu atrás de uma linda borboleta lilás. Uau! A borboleta lilás. Como era linda. Enquanto a borboleta voava para longe, ela a acompanhava. Talvez quisesse voar para longe também...

Foi então que se viu sozinha no meio da multidão. Não que agora fosse diferente, mas naquela época tinha apenas quatro anos de idade. Não viu ninguém. Tivera medo. Resolveu sentar ali, até que alguém aparecesse. A borboleta lilás fazia-lhe companhia. Ficara parada estrategicamente em seus cabelos, acarinhando-a. Era como se sentisse culpada por aquilo.

Já era quase noite quando a irmã apareceu e a encontrou. Sua expressão era um misto de fúria e alegria. Talvez mais de alegria do que de fúria. Ora, o que diria a mãe se soubesse que a caçulinha dela tinha se perdido? Não voltara para casa? Na certa, a irmã mais velha seria acusada por um crime gravíssimo, segundo as leis maternas. Imaginava até a cena. A mãe dizendo “É isso que dá, vai namorar e perde a irmã. Uma criança tão boa” e depois o choro e o lamento. É claro que isso não aconteceu. A irmã mais velha não fora castigada. Na verdade, fizera-lhe jurar que jamais contaria aquela história a mãe, comprando-a com chocolates e outras guloseimas.

A lembrança não estava registrada ali na agenda. Ufa! Enfim a encontrara. Exatamente onde a deixara há meses. Tanto tempo sem abri-la e ela havia ganhado um cheirinho de madeira úmida misturado ao cheiro do papel velho. Estava bem ali. Guardada embaixo da velha canga com a estampa do Che. Tão velha quanto à agenda, também tinha marcas de boas lembranças. O furo bem na estrela da boina do Che, por exemplo, era a lembrança da primeira vez em que fumara. O cigarro caiu de sua mão e o pano acabou ganhando um discreto furo. Só ela via e entendia o porquê. Mas como não vira a agenda? Desatenção? Não. Talvez uma doce ansiedade para escrever os minutos anteriores da mais recente aventura amorosa.

Aventura. Também usara essa palavra para caracterizar o caso com aquele professor de teatro. Seria apenas uma aventura mesmo? Não sabia ao certo. É claro que com o professor de teatro fora mesmo uma aventura. Excursionou um mês pelo Chile, pesquisando junto a ele o empoderamento dos movimentos artísticos de rua sob uma perspectiva weberiana.

Nem diabo sabia quem era Weber. Mas ela foi. Tinha a esperança de chegarem juntos à Patagônia chilena, um lugar que ela adoraria conhecer. Sempre respondia isso quando lhe perguntavam sobre o lugar que lhe tocava o coração. Tinha a resposta na ponta da língua: “Patagônia chilena”. Sim, ouvira de um velho chileno allendista que aquele era o lugar mais bonito da terra. Jurou que um dia estaria lá.

Mas não esteve. A briga pós-momento bacanal encerrou a excursão. Passara o dia inteiro bebendo um autêntico vinho da famosa Concha y Toro. Um legítimo Cabernet Sauvignon. O vinho subiu-lhe a cabeça. Mandou o empoderamento e o tal do Weber às favas. Pegou o primeiro avião. Foi-se embora. Não ficara triste em terminar com o professor de teatro. Sentia muito por não ter chegado à Patagônia chilena. Quando estaria ali novamente? Agora com o aquecimento global, era capaz de as geleiras derreterem. Ela perderia toda a beleza da vida.

A aventura chilena passou-lhe pela cabeça em um fôlego só. É. Talvez a minissérie da sua vida ganhasse um capítulo a mais. Mas como classificar o que sentia? Fazia tanto tempo que não sentia aquilo. Desde que descobrira a traição, talvez. Coisa para esquecer e deixar registrado só mesmo na sua psicóloga portátil.

Era por isso que abria a agenda novamente. Para tentar se desvendar. Desvendar tudo aquilo. A única coisa que sabia, era que ele estava fazendo um bem danado a ela. Talvez fosse cedo para indicar alguma coisa. Ele ainda era um mistério. Deixava as coisas subtendidas. Era necessário fazer uma análise de cada discurso de tudo que era proferido. Ela se embaraçava com aquilo. Odiava análise do discurso. Trancou a disciplina bem no meio do semestre e nunca mais destrancou. O fato era que ele não se revelava. Não por inteiro. Mas ela gostava da parte que havia descoberto. Era o tipo que valia fazer a pena cada instante ao lado dele.

Ah! Alguém precisava ver o sorriso encantador daquele homem. O sorriso também não se revelava. Era algo meio disfarçado. Estilo Monalisa. Meio safadinho. Como se dissesse “Quero você agora”. Mas que ao mesmo tempo dizia “Vá com calma. Eu posso me assustar e nunca mais aparecer”. E ela ficava sem entender nadinha. Ria também. Como se aquilo tudo fizesse parte da sedução. Um dia traria uma foto dele sorrindo. Colaria na agenda.

Tentava se controlar mais. Tinha uma natureza intensa e apaixonada. Ele jamais a entenderia. Do contrário, sumiria sim. Por um momento, teve medo dessa idéia. Anotou as angustias na agenda. E se ela fizesse alguma coisa que o desagradasse? Se ele sumisse da sua vida de vez? O medo era realmente sintomático: estava apaixonada. Mudar os atos e atitudes? Ela enfim teria de ceder aos caprichos de alguém? Isso seriam cenas para os capítulos seguintes. E estariam tudo ali. Devidamente registrado na agenda que voltara outra vez para o fundo da gaveta.

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