sábado, 13 de dezembro de 2008

Dina Maria Martins*

O tornar-se mulher na história
de uma sertaneja que desafiou
a estrutura patriarcal secular


Isabelle Azevedo Ferreira



A água do café demora a ferver. Parece uma eternidade. Do lado de fora da cozinha, o sertão já está fervendo. A Fazenda Barra do Cancão, situada a 33 km de Canindé, município localizado no Sertão Central do Ceará, há muito iniciou a jornada de trabalho. Os animais já partiram para o pasto. Vez por outra, é possível ouvir o trotar dos cavalos, e os vaqueiros tangerem os animais. A menina escuta tudo atentamente. Tem vontade de largar o mundo hostil que lhe é a cozinha para se incorporar ao mundo das vivências sertanejas. De fato, Dina Maria Martins não ficou só na vontade. Largou a hostilidade dos afazeres domésticos para ir se incorporar ao âmago do sertão.

Foi rompendo estruturas predominantemente masculinas que a menina astuciosa, por vezes malcriada, tornou-se vaqueira e aboiadora. Tornou-se mulher. Afinal, como afirmou Simone de Beauvoir em O segundo sexo (1949), “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Os indivíduos vão constituindo as identidades a partir da repetição dos códigos sociais matriciais. Dina, nascida cinco anos depois dos escritos, em 1954, desmistificou a lógica tão veementemente criticada pela escritora francesa.

A primeira barreira a enfrentar foi os homens da casa. Os sete irmãos opunham-se a ter uma irmã fazendo serviços de homem. Foi na figura paterna que a sertaneja encontrou o refúgio e o incentivo. O pai, José Martins da Silva, deu-lhe o inseparável companheiro de peripécias, o cavalo Estrelinha cujos banhos de juá renovava-lhe o pêlo. Martins ajudou ainda a alcunhar Dina como a “Mulher Vaqueira”.

Aos quatorze anos, o pai a incumbiu de ajudar a capturar a rês do vizinho. Não pensou duas vezes. Largou o café que tinha para fazer e foi lançar-se rumo ao destino. Os olhos dela se avivam ao lembrar o episódio que a fez entrar definitivamente para o mundo da vaquejada. Um mundo que lhe reservaria ainda as surpresas do amor.

Numa das Missas do Vaqueiro, a morena de tez bronzeada pelo sol sertanejo surpreendeu pelas doçuras do amor. Encantou-se pelo vaqueiro Fernando cujos olhos azuis desassossegaram-lhe o coração. Encontrara o companheirismo de um homem que teve a sensibilidade de entender e compartilhar com ela a paixão pela vaquejada. Tanto encanto rendeu ao casal três filhos: Júlio, Iris e Ângela.

Dezessete anos depois de casados, Fernando deixou ser seduzido pela face serena da moça Caetana, a morte para os sertanejos. O que Deus uniu só ele separa. Fernando foi então descansar no divino. Libertou-se da tristeza que lhe acometera depois de ter sido enganado por um mau negócio feito pelo melhor amigo.

Dina teve que firmar ainda mais a força que lhe é própria. Durante a missa em homenagem ao marido, aprumou a voz para aboiar a história de Fernando. A cantoria melódica que outrora desafiara Luiz Gonzaga em uma das Missas do Vaqueiro entoou toda a dor e agonia pela perda do marido.

Dina é a face do sertão que poucos conhecem. É a face que os autores propalaram nos romances, num possível exercício de futurologia. Dina é a Diadorim, personagem de Guimarães Rosas, “desmontada”. Não precisa vestir-se como homem, ainda que use vestes de vaqueiro. É na riqueza dos detalhes femininos que acontece o “desmonte”. Brincos, anéis, batons, maquiagem, tudo isso mostra uma mulher vaidosa e feminina.

Demonstra um sertão que se envaidece de sua grandeza e de sua força. Um sertão repleto de Dinas que ainda se escondem na hostilidade do lar. Demorou, mas hoje o sertão reconhece Dina, consagrando-a como uma grande Mestra da Cultura, valorizando a arte de aboiar e a figura do vaqueiro.

*Perfil escrito para a disciplina de Laboratório de Jornalismo Impresso. A Entrevista com Dona Dina será prublicada na Revista Entrevista N°21, uma publicação do sétimo e sexto semestres do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC).

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