domingo, 5 de abril de 2009

Descartes Marques Gadelha

A invisibilidade dos seres
e a miserabilidade humana:
exorcizando os fantasmas sociais.


Isabelle Azevedo Ferreira

Uma profusão de cores salta aos olhos. Vão se misturando espontaneamente para dar tonalidade aos delírios que pulsam na mente do pintor, escultor, compositor e músico Descartes Marques Gadelha. Numa esquizofrenia artística, a arte dá forma aos fantasmas que só ele parece vê. Estão por todos os lugares: nas esquinas da cidade de Fortaleza, catando lixo ou submersos nas águas do açude que encobriu a antiga cidade de Canudos, na Bahia, o Cocorobó.

Os primeiros fantasmas vistos por Descartes foram presente do pai, Diderot Gadelha, ao dar ao filho o livro Os Sertões, do escritor Euclides da Cunha. Como um portal, o livro era a passagem para o universo da Guerra de Canudos (1896-1897). Era ali, através da obra euclidiana, onde Descartes encontrava-se com uma Canudos que ele não conhecia, percorria a procissão comandada pelo beato Antônio Conselheiro ou observava a colheita e os festejos da antiga cidade.

Trinta anos se passariam para que os espíritos fossem inteiramente exorcizados, resultando num grandioso trabalho de mais de cem pinturas, oitenta esculturas e algumas xilogravuras, com a exposição Cicatrizes Submersas (1997). Para se livrar de vez de toda a angústia que sofria com os fantasmas canudenses, o acervo foi doado para o Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (MAUC).

Contudo, Descartes não abandou outros universos. Flanando pela Fortaleza das misérias, descobriu seres invisíveis do cotidiano. Os primeiros invisíveis foram descobertos ainda nas casas de prostituição, na década de sessenta. Na virada do século XXI, com romantismo deixado de lado, a prostituição ganha status de total mercantilização do corpo. Nas periferias da cidade, jovens e crianças oferecem o corpo em troca de dinheiro.

O segundo momento percebido sobre a invisibilidade dos seres deu - se num rompante de paixão. Descartes queria pintar um pôr – do – sol. Claro! Quem não gostaria de ganhar o mais belo dos pores-do-sol? Mas, ao mudar a direção do olhar, tudo que avistou foi uma imensa população buscando no lixo o sustento do corpo. O sol parece que jamais havia nascido para aquelas pessoas. Um espetáculo onde não havia beleza, mas a vida estava instaurada.

Tão logo, aquele senhor robusto, de tez serena, o “burguesão”, como ele gosta de se intitular, estava instalado no Jangurussu, convivendo e conhecendo de perto a realidade do lugar. Por quase dois anos, pintou tudo o que viu por lá.

Descartes encara a miserabilidade humana de frente ao atravessar a caverna e perceber que a luz daquele mundo é artificial. Tudo pode ser desfeito ao menor toque, como se caos estivesse pronto a ser estabelecido. Ao invés de fechar os olhos para os problemas, escancara-os numa tentativa de denunciar as chagas da cidade.

O artista cria universos paralelos que se entrecruzam e dialogam entre si. A imagem, apesar de estática, ganha força e repercute no imaginário de cada um. A luta pela sobrevivência em Canudos, por exemplo, é a mesma luta existente no Jangurussu. Mudam-se apenas os personagens e os contextos sócio-históricos, mas a luta permanece.

Quando os fantasmas não podem ser vistos, mas apenas ouvidos, é na música que Descartes os exorciza. A voz grave, porém serena, entoa cânticos de homenagem aos orixás. No carnaval, as reverências aos santos afros vêm na forma de Loas, música típica do Maracatu.

Não se sabe ao certo se a arte designou Descartes Marques Gadelha para o mundo ou se o mundo o designou para a arte. O fato é que o artista faz da arte um universo paralelo. Olhos e ouvidos são treinados para perceber os fantasmas e, tão logo, exorcizá-los.

*Perfil escrito para a disciplina de Laboratório de Jornalismo Impresso. A Entrevista com Descartes Gadelha será prublicada na Revista Entrevista N°21, uma publicação do sétimo e sexto semestres do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC).

2 comentários:

aL disse...

"Tão logo, aquele senhor robusto, de tez serena, o “burguesão”, como ele gosta de se intitular, estava instalado no Jangurussu, convivendo e conhecendo de perto a realidade do lugar. Por quase dois anos, pintou tudo o que viu por lá." Isso deve tr sido algo inexplicável!

arrasou no texto, Belle!

bjO :*

Isabelle Azevedo disse...

Valeu Aninha!

Bjo